domingo, 8 de junho de 2014

Uma história sobre traços, marketing e superação


Sou fã da galera aí de cima. Quando criança torcia mais pelo Shiryu, simplesmente porque eu o achava o mais forte de todos (e não admitia aquela derrota fatídica pro Seiya na Guerra Galáctica). Fui crescendo e acabei por "acompanhar à distância" a evolução que o desenho teve, mas concomitante a esse desenvolvimento comecei a admirar o Cavaleiro de Pégaso por tudo que ele representava: um cavaleiro que notoriamente NÃO era o mais forte, mas que era o mais persistente. E por isso, conseguia operar os mais diversos "milagres" que os "santos de Athena" ainda não ousariam fazer.

A cabeça da gente muda, a percepção sobre o mundo muda... E uma franquia de sucesso que se preze, no mínimo, precisa acompanhar essa mudança de percepção e entendimento para voltar a encantar fãs antigos e conquistar uma nova legião de seguidores. Olhando pra trás, comecei a perceber o quanto esta série japonesa mudou, seja no estilo do desenho, seja para abocanhar uma fatia maior de aficcionados ou para fazer reverência ao povo nipônico em determinado momento delicado da história. E por acaso seria possível unir todas essas razões e dar um reboot bem-sucedido no mito dos Cavaleiros do Zodíaco? Como e por que surgiriam essas mudanças na saga?


A Saga do Santuário (as Doze Casas): a primeira de todas as grandes sagas, a das Doze Casas, traz um estilo clássico de mangá, com grande destaque para poses e ações de combate, feições ocidentais e, claro, diálogos explicativos exageradamente repetitivos e extensos, causando muitas vezes no espectador uma sensação de extrema revolta; mas nada por acaso: por ter uma temática inovadora para a época, o autor Masami Kurumada utilizou técnicas muito conhecidas para capturar e manter espectadores. Com as cenas de combate espetaculares, procurava impressionar as pessoas desde o primeiro capítulo; as feições ocidentais buscavam criar uma identificação natural com os não nipônicos, uma aposta ousada de conquistar mercado internacional, apesar de ser uma característica comum em mangás; e diálogos descritivos, sempre didáticos, sobre a temática apresentada para justamente explicar ao neófito todo o enredo envolvido naquela cena... Todo enredo mesmo!

A Saga de Asgard (Odin) e A Saga de Poseidon: as batalhas com os Guerreiros de Odin (exclusiva do anime) e com os Marinas de Poseidon trazem traços bem definidos e pouco se altera do início ao fim quanto ao estilo de desenho. Porém, a complexidade da história vai aumentando apesar de sempre ter como mote central um flagelo com a deusa Athena, passando por um sequestro relâmpago até sacrifícios voluntários em prol da humanidade. Esteticamente, as armaduras evoluem e seu design se torna mais esguio e, sinceramente, mais bonito.


A grande sacada nestas duas últimas fases foi juntar uma estratégia de mudança sensível no visual do desenho com uma (acreditem!) coerente ligação com a história. Tudo isso para não cair na monotonia e para, consequentemente, não perder fãs. Já a personalidade dos personagens principais continua a mesma, reforçando correntes entre os fãs de cada herói. Um detalhe sempre importante durante essas sagas foi o holofote de tempos em tempos sobre cada cavaleiro de bronze, um artificio muito interessante para não centralizar o sucesso da série em apenas um personagem.


A Saga de Hades: apesar de compor a saga original, a saga de Hades já demonstra uma maturidade maior em comparação com as outras e possui um enredo bem mais obscuro. Os Cavaleiros de Ouro participam de forma muito mais efetiva durante toda a história e temos o privilégio de assistir o que seriam as Batalhas de Mil Anos (míticos combates entre os cavaleiros mais fortes de Athena), as Armaduras Divinas e os Campos Elísios (morada de alguns deuses e lugar onde se encontra o corpo de Hades). Os Três Juízes do Inferno (Radamanthys de Wyvern, Minos de Griffon e Ayacos de Garuda) junto, claro, com Hades, são os expoentes desta fase. Acompanhando o amadurecimento do seu público, Kurumada buscou manter essa fidelidade através do maior teste de fogo da guarda pessoal de Athena. E adivinhem como? Pela velha e boa fórmula do sacrifício pessoal e coletivo de todos os cavaleiros, principalmente os de Ouro. Desenhando um cenário sem esperanças, Kurumada revela aos poucos importantes reviravoltas no enredo e vai inclusive pavimentando o caminho para futuras séries que estarão intrinsecamente relacionadas. Vejam como ele continua tecendo novas tramas e buscando manter a audiência criada há anos...

Com origens e histórias bem diversificadas, Seiya de Pégaso, Shiryu de Dragão, Hyoga de Cisne, Shun de Andrômeda e Ikki de Fênix passam a trilhar a mesma jornada, mas com diferentes formas de lidar com as batalhas: Seiya, com sua persistência e obstinação, era o retrato de todo o trabalho de Kurumada e refletia a visão de superação na qual procurava identificar o povo japonês (em diferentes guerras, mesmo caindo, sempre se reerguia); Shiryu, um dos mais presentes na saga e com um imponente histórico de batalhas mortais, seu sobrenome poderia ser "Sacrifício" (já se cegou durante combate com um cavaleiro de prata e aplicou um golpe suicida na batalha das Doze Casas com o Cavaleiro de Ouro de Capricórnio, Shura); Hyoga, com suas particulares limitações, nutre uma infinita saudade de sua mãe, vítima de naufrágio na Sibéria, e torna-se com o tempo um dos mais queridos e admirados personagens da série; Shun, muito criticado por ser considerado um ponto fraco no beligerante grupo dos cavaleiros, possui na verdade um rico significado diante de toda uma certeza relacionada à necessidade de lutar: como um contraponto em toda a saga, Shun se propõe simplesmente a não lutar (!!!) e somente demonstra seu verdadeiro poder diante de circunstâncias sem saída; e Ikki, o cavaleiro mais forte da equipe devido ao seu treinamento psicopático da Ilha da Morte, e ao mesmo tempo o guardião pessoal de seu irmão Shun (é um paladino solitário e só entra em uma batalha cuja magnitude seja compatível ao seu poder).

Diante deste mix de personalidades e comportamentos, foi montado um esquadrão de frente muito eclético, capaz de capturar a atenção dos mais variados fãs de anime. No fundo, Kurumada sabia que diversificar seria o segredo para conquistar mentes e corações de um público de ordem mundial. Unir culturas e formas de pensar diferentes numa mesma série se tornaria uma genial jogada de marketing. E de mestre!


The Lost Canvas: esta é a saga que particularmente mais gostei. A história se passa 200 anos antes da cronologia da série original. Possui traços menos ocidentais, uma grande contribuição da computação gráfica e uma temática bem mais adulta. Pra se ter uma noção, o enredo já começa durante a Guerra Santa do século XVIII. Inteligentemente, a autora Shiori Teshirogi, aconselhada por Kurumada, faz links muito coerentes com a saga original, explicando coisas que são mostradas na saga contemporânea mas não muito aprofundadas naquela época. Talvez a principal revelação feita nesta série seja a razão de o Cavaleiro de Pégaso sempre estar junto de Athena, seja qual for a era: ele é o guardião pessoal da deusa, reforçando o conceito de reencarnação das filosofias orientais. Lost Canvas tem uma identificação muito mais forte com a cultura nipônica, apesar de as invasões dos Espectros (guerreiros de Hades) acontecerem em várias cidades do mundo. A cultura oriental foi essencialmente utilizada como base desta saga.


Capitaneados por Tenma, o cavaleiro de Pégaso daquela era, os guerreiros de Athena batalham, sem fases intermediárias, contra o exército de Hades. As batalhas do anime são impressionantes e algumas chegam a ser tão impactantes quanto as do mangá. Desde o início da série original, exibida durante as décadas de 80/90 no mundo todo, não havia uma mudança tão radical na história, principalmente no que tange aos traços empregados. Teshirogi foi muito feliz ao captar a essência do desenho e fez uma animação para adultos, os mesmos que acompanharam enquanto crianças o início de um mito midiático.


Saint Seiya Ω (Omega): Uma nova fase, uma nova história, uma nova saga. Sem uma continuidade direta com a série original de Kurumada, mas respeitando os principais personagens daquela geração, os novos cavaleiros de bronze buscam novamente fazer uma limpeza no Olimpo, em busca da salvação de Athena. Num primeiro momento, não parece ser nada original, até olharmos mais de perto. O novo cavaleiro de Dragão, Ryuho, é filho de Shiryu, "o lendário cavaleiro de Dragão"; a inclusão de uma amazona no grupo principal, Yuna de Águia; e Kouga de Pégaso, um personagem, no mínimo, misterioso até a alma. Com traços mais curvilíneos e voltados para a conquista de um novo público infanto-juvenil, Saint Seiya Omega trilha novamente um caminho que promete muito sucesso e complexos enredos.


Apesar da série ter sido produzida pela Toei Animation e usar a história original de Kurumada como base, seu lançamento foi muito oportuno. Além de manter a lenda dos Cavaleiros do Zodíaco acesa na cultura dos animes, foi empregado um estilo de desenho bastante contemporâneo e com identificação muito forte junto aos jovens espectadores. Fora isso, novamente o mix de culturas e personalidades continuava a se consagrar como uma fórmula para alcançar o sucesso internacional. E não para por aí: se percebermos bem, o resgate pela auto-estima dos japoneses e o apelo pela usual superação em momentos críticos foram empregados sabiamente neste momento. Não simplesmente porque são temas atemporais, mas porque em 2012, ano de estreia da série, ainda tínhamos como recente toda a tragédia causada pelo terremoto/tsunami de 2011 no Japão. Parece que nada é por acaso e a ressurreição da lenda dos Cavaleiros veio a calhar justamente quando o povo mais precisava. Bem como no desenho. Bem como na arte. Bem como na vida real.

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